Artigo de Rui Dias, no jornal Record:
1. O ar pesado e os gestos indolentes são apenas o início do paradoxo: pertence à estirpe dos que agem mais depressa e vêem mais longe. Os movimentos pausados, que chegam a parecer desenquadrados da equipa, são afinal o ponto de partida para agilizar a manobra e dar inteligência ao processo criativo; no desmiolado reino da pressa, da correria e do choque, sobrevive com talento, coordenação e potência; no caos em que o jogo se transformou em nome da modernidade, Pedro Barbosa defende convicções que o transformam, cada vez mais, num dos grandes clássicos do futebol português da última década. Um ser maior que põe as virtudes no lugar e recupera verdades deturpadas pelo tempo. Uma acima de todas: o grande futebol sempre dependeu da velocidade do pensamento e não da velocidade das pernas.
2. Porque domina a geografia e as regras de cada pedaço do terreno, dá respostas adequadas às dificuldades que lhe surgem pelo caminho; porque se mexe bem nas zonas neutras, alimenta as rotinas como distribuidor preciso e criterioso; porque é um génio e sabe assumir responsabilidades, explode em sucessivas invenções na zona de risco, acções que o tornam imprevisível no espaço ofensivo. Quando leva a bola, defendida com habilidade pelo físico robusto de falso lento, tudo pode acontecer. Sabe enganar com o corpo, com as pernas e até com o olhar, mas também se torna imparável pela execução perfeita; derruba pelo drible que o aproxima da baliza e faz aumentar o perigo, mas também pelo passe revelador da visão escandalosa. Tem o hábito de pensar antes de fazer e é isso que o distingue de outros.
3. Pedro Barbosa luta pelo equilíbrio entre a uniformização física e o direito à diferença; para que a táctica e demais factores repressivos não sufoquem o instinto e a criatividade; para que as ideias do treinador sejam apenas a base orientadora de uma expressão individual tão livre quanto possível. Por ser líder e independente, tornou-se perigoso para quem prefere gente dócil e bem comportada; por ser arisco e pouco simpático, tem-lhe faltado apoio exterior nos conflitos; por ter um estilo descontraído, nem sempre recolhe a simpatia das bancadas. Resta-lhe a confiança ilimitada dos companheiros, o temor dos adversários e a admiração de quem lhe atribui méritos de jogador único. Nada que o proteja do banco dos suplentes, utilizado para beliscar a liderança e punir o excesso de qualidade - vão 2-0 para os medíocres.
4. Símbolo de um futebol que nos foge por entre os dedos, ele é a imponente figura que rema contra a maré: porque trava onde todos correm sem parar; inventa quando outros se limitam a cumprir ordens; baixa as pulsações nos momentos de tensão máxima; reflecte e decide pela sua cabeça enquanto a maioria se transforma em máquinas de guerra despojadas de razão. Mesmo agora que recuperou lugar e protagonismo na equipa, as notícias não são animadoras, porque a arte continua sob suspeita e a tendência do jogo afasta-se dos seus princípios, da sua atitude e do seu conceito estético. Pedro Barbosa será sempre desalinhado, fora de moda e discutido com paixão. A caminho do fim da carreira, já ninguém duvida que o futebol lhe reservou um lugar na história. Se me permitem, não faz mais do que a sua obrigação.
Autor: RUI DIAS
Data: Quinta-Feira, 6 de Novembro de 2003 00:20:00
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